Nas aulas de história, estamos sempre realizando a análise da construção, efetivação e evolução do exercício da cidadania no Brasil. Pensar nesse exercício em uma sociedade democrática é sempre um grande desafio e no Brasil essa reflexão se reveste de um sentido especial, tendo em vista que nosso tecido democrático começou a ser costurado apenas em 1889, com a proclamação da República.
Observamos que ao longo desses mais de cem anos de vigência, esse processo não esteve assentado em bases capazes de produzir uma sociedade que exerça seus deveres e direitos de forma ativa. Segundo Dallari (2004, p. 22), cidadania diz respeito a um conjunto de direitos que possibilitam à pessoa participar ativamente da vida e do governo na sociedade a que pertence. Desse modo, seu exercício pleno deve combinar liberdade, participação e igualdade para todos.
Considerando esse cenário, não é difícil concluir que o conhecimento é um meio profícuo de capacitação do indivíduo para uma vida cidadã, sendo as escolas instituições de mediação de processos educativos, e responsáveis por propiciar aos estudantes um ambiente favorável a essa formação.
Nesse sentido, o Projeto Educativo Comum da Rede Jesuíta de Educação Básica (PEC) tem como pressuposto a leitura dos sinais dos tempos, reconhecendo e assumindo seus desafios como campo de missão. Entendemos que o currículo é o “ethos” no qual realizamos a excelência na educação de pessoas conscientes, competentes, compassivas e comprometidas com a causa da democracia em todas as suas instâncias. A educação jesuítica é instrumento efetivo de formação, sendo assim nas suas unidades educativas os currículos são estruturados a partir do entrelace de valores para o exercício de uma cidadania ativa como justiça, respeito, solidariedade, contemplação e compaixão.
Diversos projetos são desenvolvidos de maneira integrada entre as várias áreas do conhecimento, garantindo o protagonismo do estudante, dentre eles, o Projeto de Simulação das Organizações das Nações Unidas realizado na instância colegial e intercolegial. Ambos tratam-se de relevantes estratégias pedagógicas, no entanto, me deterei a abordar sobre a intercolegial.
De 22 a 24 de setembro deste ano, foi realizada a segunda edição da ONU Intercolegial da RJE em formato virtual. Um evento organizado por uma comissão formada por representantes de cinco unidades educativas da qual tive a honra de fazer parte representando o Colégio Antônio Vieira (Ba), ao lado da Coordenadora pedagógica, Léa Pontes. A comissão contou com o apoio e a liderança do professor Antônio Aílton Ferreira de Cerqueira, referência da unidade anfitriã, o Colégio São Francisco de Sales – Diocesano (PI), conjuntamente com os representantes do Colégio Santo Inácio (RJ), Colégio Loyola (MG) e Colégio Medianeira (PR).
Durante esses três dias, estudantes da RJE ampliaram seus repertórios numa experiência acadêmica profícua fundamentada na fé, na prática da justiça e no cuidado com a casa comum, visando a elaboração de Projetos de Resolução. Defenderam a política externa dos países que representavam na busca de proposituras para crises globais complexas apontadas nos seguintes comitês:
- Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU) – Guerra do Tigray: Conflito Civil e a Crise Humanitária na Etiópia
- Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA) – Desenvolvimento Sustentável da Amazônia: diferentes conflitos no uso de seus recursos naturais
- União Europeia (UE) – Conflito Rússia e Ucrânia
- Assembleia Geral das Nações Unidas (AGNU) – Crise Humanitária dos Curdos
- United Nations Historical Security Council (UNHSC) – Crise dos Mísseis (1962) – Comitê histórico, em inglês e participação em duplas.
Importante ressaltar que em seu âmbito prático e consequencial, o protagonismo dos estudantes é vetor de todo o processo. O Secretariado Geral dessa edição contou com a liderança competente e comprometida com os valores cristãos de Laura Siqueira (Colégio Loyola) e Antônio Pedro Gonzalez (Colégio Santo Inácio).
Os 141 estudantes, que participaram da II ONU Intercolegial da RJE, vivenciaram na prática o mundo das relações internacionais, ampliaram o seu repertório conceitual, sua capacidade de articular informações e conhecimentos, além de desenvolver a observação, a argumentação e oratória, a cortesia diplomática, habilidades verbais e escritas.
Ademais, a proficiência em Língua Estrangeira a partir da apreciação de diferentes pontos de vista sempre estimulando o respeito e a empatia em relação a outros povos, assim como as interlocuções de temas relevantes corroboram para que a apropriação do conhecimento fosse realizada de maneira significativa e com valor, ampliando o sentido de educação para a cidadania global.
Nessa trajetória os professores propuseram caminhos e acompanharam os estudantes, criando situações diferenciadas a fim de atender a um universo múltiplo de sujeitos distintos. As demandas emergentes do contexto da pandemia foram muitas e os desafios não previstos nos impeliram a mudanças e ajustes de rotas. Circunstâncias que constituíram as peças de um currículo insurgente diante do qual, professores e estudantes, tiveram a oportunidade de amadurecimento e aprendizagem no enfrentamento de situações-problema.
Atualmente, uma das principais pautas que tem mobilizado a sociedade é o debate sobre democracia e cidadania, tendo em vista o ambiente internacional e nacional impulsionado pelos recorrentes discursos autoritários com utilização de linguagem abusiva e violenta que acabam corroendo o tecido democrático no país e no mundo. Para mim, foi motivo de orgulho perceber que nossos estudantes foram exemplo de amadurecimento democrático no palco da ONU Intercolegial.
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Os debates ocorreram com o devido respeito aos posicionamentos contrários. Todos tiveram seu espaço de fala e exerceram uma escuta atenciosa em razão de haver uma efetiva elaboração de projetos de resolução, que figuraram como instrumentos promovedores da paz, da segurança, das relações amistosas entre as nações, do respeito aos direitos e do cuidado com o outro e com a casa comum.
A estabilidade democrática que nosso país almeja alcançar deve ser responsabilidade de todos e da escola, em especial. Dessa forma, a difusão da cultura de simulações da ONU no espaço escolar é um importante avanço nesse sentido, ao propiciar aos estudantes a participação no debate público de forma consciente e qualificada, respeitando diferentes posições, com vistas a possibilitar escolhas alinhadas ao exercício democrático e ao seu projeto de vida, com liberdade, autonomia, consciência crítica e responsabilidade.
Autora: Gigi Albuquerque
Atua no Colégio Antônio Vieira exercendo as seguintes atividades:
Professora de História
Coordenadora do Departamento de História do Ensino Fundamental e Médio
Articuladora acadêmica e orientadora do Projeto ONU junto aos estudantes nas instâncias Colegial e Intercolegial.
Referências
DALLARI, Dalmo de Abreu. Direitos Humanos e Cidadania. São Paulo. Ed. Moderna. Col. Polêmica, 2004.
PEC – Projeto educativo comum da rede jesuíta de educação básica: 2021-2025. — 1. ed. São Paulo: Rede Jesuíta de Educação, 2021.
TEIXEIRA NETO, J. Insurgências curriculares e mochilas existenciais: etnocurrículo tensionando pedagogias culturais. In: Anais do VI colóquio internacional de políticas e práticas curriculares: currículo – (re)construindo os sentidos de educação e ensino. CD-ROM. João Pessoa: UFPB, 2013. Acessado em: 10 mai. 2014.