Por Angélica Engel, professora e coordenadora de Formação Cristã do Colégio Anchieta, de Nova Friburgo (RJ).
A Quaresma rompe o ciclo de festas e celebrações que arrastam multidões, seja nas areias das praias, nas ladeiras das cidadezinhas ou nas grandes avenidas do nosso país. As cinzas da quarta-feira é um prenúncio do renascer. Somos pó, somos barro, não asfaltos e areias.
As aproximações que as festas nos permitem, legítimas e necessárias, são interrompidas como num fechamento de ciclo. É preciso lembrar que somos feitos de sonhos, ilusões, fantasias e alegria. Festejamos a vida e as aproximações que as festas nos proporcionam. Celebramos a diversidade de cores, os sons, ritmos e dançamos no sol e na chuva como nossos povos dessa terra. Mas somos mais. Papa Francisco nos recorda que “A vida não é um teatro”, (…)“e a Quaresma convida-nos a descer do palco do fingimento e regressar ao coração, à verdade daquilo que somos”¹. Somos então impulsionados para outras aproximações, também legítimas e necessárias, mais intimista, sem multidões ou fantasias. Apenas vestidos de quem somos.
De olhos abertos e corações sensíveis podemos perceber que as cinzas da Quarta-feira de Cinzas estarão espalhadas por aí, não como uma lembrança fúnebre, mas como sinal de um recomeço, convite que nos aproxima de Cristo. Ele que, tomando em suas mãos as cinzas do chão, misturando-as com a saliva e fazendo um unguento, é capaz de abrir nossos olhos e, tocando, nos revelar três grandes realidades que nos interpelam nesse novo ciclo: a realidade que somos, as realidades dos outros e a relação com o Pai.
Abrem-se os olhos que permitem ver as nossas necessidades mais íntimas e nos perguntar. Quais são as nossas fomes? Quais são nossos exageros e enganos? A prática do jejum, seja ele corporal ou moral, permite essa aproximação estranha. Um olhar sincero e, para aqueles que tem coragem, revelador! As cores de nossa tela interior podem estar desbotadas ou muito vibrantes. Podemos perceber que, talvez, e só talvez, já não somos quem pensamos ser. E a tarefa, urgente, passa a ser aproximarmo-nos de nós mesmos. Redescobrir-nos. As listas de propostas de jejuns quaresmais, carregadas de intenções e bons propósitos, passam a ser como lanternas que, iluminando dentro, põe para fora, faz ver o quanto se aproximar de si é evoluir na avenida da vida.
Abrem-se os olhos que enxergam o outro, através da caridade. O olhar se levanta e podemos assim, aproximarmo-nos do irmão, da irmã. Considerá-lo como um comigo, sentir sua presença, ouvir seu coração, escutar suas dores, acolher suas angústias, experimentar suas realidades e nos sentirmos mais próximos. Ser com o outro para ser humano de novo. Uma aproximação que mostra que podemos estar em alas diferentes, carregar adereços muito diversos, mais leves ou mais pesados, mas compomos o mesmo enredo da existência a nos desafiar.
Abrem-se por fim, os olhos que se ocupam de contemplar as aproximações com Deus. E o olhar se eleva! Pela oração, que o Papa Francisco chamou de “respiro da fé”, é possível nos aproximar do Pai, beber de suas fontes, comer de seu banquete e inebriar-se de sua Graça. Sentir o ritmo da respiração, sermos íntimos! Contemplativos na ação, próximos a Deus, santificados por essa relação, podemos entender que o silêncio orante não é ausência, é vibração interior e conexão do corpo e do espírito.
Impregnados do movimento que nos põe em sintonia com a orquestra criadora de Deus, caminhamos com o outro, nossos irmãos e irmãs, a exemplo de Jesus, filho amado do Pai, mestre da bateria, que faz pulsar a vida.
Aproximem-nos, então, nessa Quaresma, daquele que, modelo perfeito, aproximou-se por primeiro de nós. E… “Reconheçamo-nos pelo que somos: pó amado por Deus; e, graças a Ele, renasceremos das cinzas do pecado para a vida nova em Jesus Cristo e no Espírito Santo².”
1-Papa Francisco, homilia na missa com o rito da bênção e imposição das cinzas, realizada na Basílica de Santa Sabina, em Roma, no dia 14/02/2024.
2-Papa Francisco, homilia na missa com o rito da bênção e imposição das cinzas, realizada na Basílica de Santa Sabina, em Roma, no dia 14/02/2024.