Artigo: “Com Inácio em Montserrat”

Por João Melo, teólogo, filósofo e professor do Colégio Santo Inácio, do Rio de Janeiro (RJ).


Depois que se recuperou do ferimento da batalha em Pamplona, Inácio de Loyola iniciou uma longa peregrinação. Logo no começo dessa andança, o Peregrino – como mais tarde se intitulou – teve um importante encontro com Nossa Senhora de Montserrat. Montserrat foi uma pausa na caminhada de Inácio. O que pensava pelo caminho – Lc 24,17? Inácio refletia sobre as grandes obras que desejava realizar por amor a Deus (Autobiografia, n.17).  

Fé e sexualidade

Ele estava com a cabeça em questionamentos sobre sua sexualidade e seu futuro. Sabemos desse episódio sobre a intimidade de sua vida interior porque seu confidente, Diogo Laínez, SJ, registrou que “ele decidiu ir para Nossa Senhora de Montserrat; e porque tinha mais medo de ser vencido no que diz respeito à castidade do que em outras coisas, fez no caminho voto de castidade, e isso a Nossa Senhora, a quem tinha especial devoção”. Ele desejava expressar sua afetividade de forma saudável e de acordo com seus desejos profundos.

Criada por Deus, a sexualidade diz respeito a toda a dimensão relacional da pessoa humana para que se relacione com Ele, consigo mesma, com os demais e com a Casa Comum. Portanto, engloba afeto, desejo, intimidade, prazer, emoções, sentimentos e influencia pensamentos, ações e interações. O ato sexual faz parte das expressões da sexualidade humana desejada por Deus.

Inácio, entretanto, queria viver um amor casto à Virgem que tinha diante de seus olhos.  E foi no caminho até Montserrat que ele ganhou alguma iluminação sobre esse ponto que lhe preocupava. Mesmo os biógrafos mais competentes de Inácio não possuem detalhes sobre como isso aconteceu exatamente, tamanha é a intimidade do episódio para a vida do peregrino. O silêncio sobre isso não significa menor importância, mas o quanto sua resolução é pessoal e não institucional. Talvez, justamente por tratar-se de algo muito particular, isto é, que Inácio percebeu não ser um caminho proposto a todas as pessoas, é que ele não enfatiza esse episódio em sua própria autobiografia. Seja como for, esse momento marca uma mudança na vida do santo que se compromete exclusivamente à “Dama de seus pensamentos”.

Inácio foi afortunado de chegar aos pés da Santa de Montserrat com uma opção de vida de “oferecer-se a Deus por mediação de Nossa Senhora” (Ricardo García-Villoslada, SJ) que era à sua época enaltecida pela Igreja como “estado de perfeição”. Porém, infelizmente, o celibato não era a realidade vivida por todos os que optavam por esse modo de vida cristã. O próprio irmão de Inácio, que era padre, tinha lá seus problemas com essa promessa.

O celibato cristão ou é vivido como um dom ou torna-se um sofrimento e fonte de constante infelicidade – ao ser vivido como uma mutilação afetiva.  De todo modo, é possível rezar a peregrinação de Inácio até Montserrat e sentir-se tocado por outras opções de vida diferentes da que ele fez. Na verdade, cada pessoa que põe os olhos diante da imagem da Virgem, pode tomar consciência que o sonho de Deus para ela é tão “perfeito” quanto o celibato foi para Inácio. É preciso perguntar com honestidade: Qual é a sedução divina que me clama ao pé do ouvido quando contemplo a imagem da Virgem?

A Virgem do povo

Nossa Senhora de Montserrat tem uma história milagrosa. Segundo antigos escritos, sua imagem foi encontrada por uns pobres pastorinhos em 880, em uma distante caverna na montanha de Montserrat, após seguirem uma luz misteriosa. Quando tentaram mover a imagem para o centro da cidade, ela se tornou tão pesada que foi impossível movê-la, evidenciando o desejo da Virgem de permanecer no local onde foi encontrada, na periferia da montanha sagrada. Ela queria permanecer com os pobres.

O que muita gente não sabe, é que a imagem de Nossa Senhora de Montserrat é carinhosamente chamada de “La Moreneta” – “A Moreninha”, em português. Ela recebe esse nome devido à cor negra da imagem, resultante da fumaça das velas, caso parecido com o da imagem de Nossa Senhora Aparecida, no Brasil, que também é negra.

Mulheres negras são quase 28% da população brasileira, o maior grupo populacional do país. Porém, mulheres e meninas negras são as pessoas que mais vivem em vulnerabilidade social e ocupam poucos espaços de decisão. Especialmente as moradoras de periferias, morros e favelas, enfrentam barreiras significativas no acesso a todos os tipos de direitos e serviços públicos, inclusive aos meios adequados para questões de saúde.

É a partir dessas mulheres que hoje contemplo a “Virgem Moreninha”, entronada numa cadeira de Mestra, sede de sabedoria, e a vejo mulher negra, ladeada por afirmações de fé debatidas apenas por homens em reuniões conciliares sobre o seu jeito de ser mãe e até sobre o seu próprio corpo feminino.

Projeto de Vida

Para marcar sua nova vida, Inácio realizou uma vigília, vestido como cavaleiro, na véspera da festa da Anunciação, em 24 de março de 1522. Doou suas roupas finas a um mendigo e vestiu-se com um hábito feito de pano de saco. Passou a madrugada, ora de pé ora de joelhos, diante de Nossa Senhora de Montserrat, em oração fervorosa. Aos pés do altar, pediu que pendurassem sua espada e seu punhal, simbolizando a renúncia às suas antigas aspirações de cavaleiro e a dedicação ao serviço de Cristo. 

Após uma noite de oração, partiu de Montserrat ao amanhecer, desejando evitar qualquer reconhecimento e honra de nobre cavaleiro e carregando apenas um caderno onde anotava suas descobertas espirituais – caderno este que se tornaria os Exercícios Espirituais. Assim, Inácio abraçava uma vida de quem caminha com os pobres, a exemplo do desejo de sua “Senhora Moreninha”.

Fonte: Rede Inaciana de Colaboração, Fé e Espiritualidade – Rede Servir

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