Por Kemilly Mendonça Maciel Ventura de Vasconcelos, diretora acadêmica do Colégio Santo Inácio, de Fortaleza (CE)
As escolas da Rede Jesuíta de Educação (RJE) apontam como visão até o ano de 2025 ser uma “rede de centros inovadores de aprendizagem integral que educam para a cidadania global com uma gestão colaborativa e sustentável”. Definindo cidadãos globais como “aqueles que constantemente buscam aprofundar sua consciência de seu lugar e responsabilidade, local e global, em um mundo cada vez mais interconectado; aqueles que se solidarizam com os outros na busca de um planeta sustentável e um mundo mais humano, como verdadeiros companheiros na missão de reconciliação e justiça” (Cidadania Global: Uma Perspectiva Inaciana, 2019). Essa visão mais crítica sobre o conceito de cidadania nos anima a colaborar com a missão, munidos de ânimo e esperança, de modo a fazer frente à resistência na perspectiva de formar pessoas para os demais.
Através de um currículo que garanta experiências capazes de humanizar o humano e promover encontros que levem nossa comunidade educativa a não se acostumar com a indiferença, com as injustiças e com o desamor. Um currículo que vise a formação para a cidadania global, no qual a comunidade educativa seja implicada a enxergar as diferenças e celebrá-las, ao invés de repulsá-las e condená-las. Educar para a cidadania global requer de nós uma postura acolhedora e responsável diante de nossas diferenças. Temos culturas locais, necessidades locais, mas condutas que impactam globalmente. E esse pode ser o ponto que nos une, para sermos cidadãos do mundo, independente de fronteiras.
Realizamos diversos projetos e ações que nos interpelam a formar pessoas compassivas e comprometidas com os demais, pois nossos currículos precisam evidenciar e discernir sobre práticas globalizantes, que extrapolem a globalização econômica, política e cultural. Práticas em que a dignidade da pessoa humana seja a maior pauta. Desse modo, realizamos, no ano de 2023, a primeira edição do projeto Simulação da Organização das Nações Unidas (SONU), com os alunos do Anos Finais do Ensino Fundamental e Ensino Médio, que tem como objetivos o aprofundamento de conhecimentos dos países integrantes da ONU, a elaboração de seus discursos, que devem ser pacíficos e diplomáticos, e a apresentação de propostas que visem a paz mundial e a dignidade da vida humana.
É uma experiência de sentir e saborear as reais necessidades e desafios de diferentes ordens: econômicas, políticas, sociais, culturais, religiosas, étnicas, dos países pertencentes e apresentar proposições sobre cada uma delas. Esse projeto possibilita a produção de conhecimento a partir de posicionamentos possíveis, confrontando nossos estudantes e educadores com realidades, por vezes duras e injustas, porém possibilitando-os desenvolver uma linguagem na qual possam acessar os demais líderes, construindo caminhos possíveis para o diálogo e a convergência de ideias para uma vida comunitária.
Nessa primeira edição, tivemos uma boa repercussão local, visto que o projeto aconteceu na Assembleia Legislativa do Ceará, e contou com a participação das famílias e comunidade local, gerando assim um convite a pensarmos sobre a paz mundial e a dignidade humana, para além de nossas fronteiras. Esse importante e impactante exercício contribui para a formação da consciência e do compromisso que devemos assumir na construção de um mundo mais justo e fraterno, em que todos possam usufruir de suas riquezas e beleza.
Ainda, imbuídos da missão de formar pessoas para os demais, propomos, para um futuro breve, desenvolver os projetos Parlamento Jovem e Câmara Mirim (projetos já existentes em outras unidades da RJE do Brasil), em que nossos estudantes, do Ensino Médio e do Ensino Fundamental, respectivamente, possam participar ativamente da vida pública, levando suas contribuições e considerações políticas à assembleia e à câmara, de modo a propor melhorias a todos que usufruem dos serviços públicos como garantia de uma vida digna e justa.
Por fim, apresento algumas reflexões do documento Colégios Jesuítas: uma tradição viva no século XXI, quando afirma que os colégios jesuítas estão comprometidos com a cidadania global, no qual a comunidade educativa é chamada a reconhecer-se como “membros da família humana, com uma comum responsabilidade por todo o mundo, mais que simplesmente membros de uma nação ou grupo específico” (2019, p.66). O posicionamento do documento citado nos faz um apelo para que nos reconheçamos como humanos, sendo uma máxima de nossa existência. É um chamamento para construirmos um mundo em que nossas diferenças sejam possibilidades de ampliação de repertório para que assim possamos construir, juntos, uma única nação em que todos e todas consigam viver com dignidade e fraternidade.
Tendo, portanto, percorrido a literatura que aborda o tema da formação dos jovens para o contexto mundial e o vasto acervo documental da Companhia de Jesus sobre a formação dos nossos estudantes para a sociedade, propõe-se que lutemos reflexivamente contra uma corrente reducionista que faz com que o sujeito global somente esteja atrelado ao mercado financeiro global. O sujeito global, a partir da literatura que utilizamos, deve ser aquele que seja capaz de reger uma orquestra sem deixá-la desafinar tanto na nota da responsabilidade social-planetária quanto na nota da economia mundial mais solidária. Quem sabe assim, com essa frente de resistência em formar pessoas para os demais, fundamentada na pedagogia inaciana, consigamos fazer brotar uma flor do impossível chão
* Trecho retirado do artigo publicado no Boletim de fevereiro de 2024 do Centro Virtual de Pedagogia Inaciana (CVPI), da Conferência dos Provinciais da América Latina e do Caribe (Cpal) da Companhia de Jesus. Leia na íntegra: https://pedagogiaignaciana.com/biblioteca-digital/biblioteca-general?view=file&id=4086:formar-pessoas-para-os-demais&catid=8