Artigo: “Desafios da Formação Integral Inaciana e a Sociedade do Desempenho”

Por Cristina Cardoso, pedagoga com especialização em Educação Jesuítica: Aprendizagem Integral, Sujeito e Contemporaneidade, articuladora pedagógica do 8º ano do Ensino Fundamental à 3ª série do Ensino Médio e coordenadora pedagógica da 3ª série do Ensino Médio do Colégio Antônio Vieira, em Salvador (BA).


O Projeto Educativo Comum da Rede Jesuíta de Educação (PEC/RJE) afirma que “nas instituições educativas da Companhia de Jesus, a aprendizagem se dá na perspectiva do desenvolvimento pleno do sujeito”. Esse modelo educacional busca formar indivíduos completos, capazes de desenvolver plenamente suas capacidades acadêmicas, humanas e espirituais.

A educação integral inaciana não descuida da excelência acadêmica. Busca formar estudantes que tenham uma formação sólida em diversas áreas do conhecimento, e que sejam capazes de aplicar esses conhecimentos de maneira crítica e criativa. É uma pedagogia que enfatiza a riqueza da formação de lideranças comprometidas com a transformação social, capazes de atuar como agentes de mudança em suas comunidades e, por essas razões, enfrenta os desafios do mundo neoliberal. A educação jesuíta é instrumento efetivo de formação, na prática da justiça, no cuidado e responsabilidade com a Casa Comum e no diálogo interreligioso que prepara nossos estudantes para entender, interagir e abraçar a diversidade religiosa de nosso mundo.

Na contemporaneidade, entretanto, as unidades educativas inacianas enfrentam vários desafios para promover a formação integral de seus alunos em uma sociedade imersa na lógica neoliberal. Isto porque, em um contexto que valoriza o individualismo e o sucesso a qualquer custo, muitas escolas no mercado se veem pressionadas a se adequar a esses valores, muitas vezes em detrimento de uma educação mais humanizada. A competição exacerbada, incentivada pelo sistema de notas e pelo mercado de trabalho cada vez mais exigente, pode levar a uma educação voltada apenas para o acúmulo de conhecimentos técnicos e habilidades específicas, deixando de lado o desenvolvimento de aspectos emocionais, criativos e críticos dos estudantes.

A fragmentação do conhecimento, com a ênfase em disciplinas isoladas e sem relação entre si, também dificulta a promoção de uma formação integral. Essa opção de currículo pode levar a uma visão estreita de mundo, em que as diferentes áreas do conhecimento não se conectam, e a formação educacional pode tornar-se apenas técnica, sem uma compreensão mais ampla e integrada da realidade. A escola passa a ser vista por grupos econômicos apenas como um ativo lucrativo e que, a qualquer momento, pode ser descaracterizado de sua função, segundo a lógica neoliberal.

‘Emergência educativa’

O atual contexto educacional mostra-se, assim, muito diverso e competitivo. Observa-se uma “emergência educativa” como consequência de um mercado constituído em torno da educação. A alta competitividade, impulsionada pelo mau uso das avaliações padronizadas de âmbito nacional e internacional, traz o risco de reduzir o processo formativo ao alcance de resultados de avaliações externas. Diante das pressões da lógica neoliberal, as escolas jesuítas sentem refletir em suas ações pedagógicas as adversidades e desafios da formação integral no mundo contemporâneo.

A educação baseada principalmente na lucratividade do mercado global amplia essas deficiências, criando uma estupidez gananciosa que põe em risco a própria existência de democracia, e que certamente impede a criação de uma cultura mundial satisfatória. Nota-se, desta forma, que a educação passa por um período de grandes desafios, em que tudo precisa ser resolvido na mais alta velocidade para acompanhar o avanço tecnológico e a globalização das ideias e dos povos, trocando a formação humanista, pela formação utilitarista para o mercado de trabalho.

Educar para a cidadania global, em uma sociedade neoliberal, não é uma opção fácil, mas é uma necessidade, pois precisamos ter a consciência, que um ato ou decisão não modifica ou influencia apenas a vida dos que estão próximos, mas pode repercutir em vários locais e na vida de diversas pessoas, pois, em um mundo interconectado, tudo acontece em rede e se propaga em velocidade exponencial. Assim, “o enfoque inaciano não se restringe à sala de aula ou à instituição escolar, mas pode ser aplicado a todas as situações em que se dá a educação, de modo formal ou não formal, dentro ou fora de instituições educativas”.

Epidemia do cansaço e modernidade líquida

Ilustração usada em vestibular da Fuvest em questão sobre a Sociedade do Cansaço e a Síndrome de Burnout.

Em meio a tantas transformações de uma sociedade moderna e capitalista cada vez mais fluída e inconstante, o sociólogo polonês Zygmunt Bauman explica: “Modernidade líquida é o termo usado para definir o tempo presente, também chamado de pós-moderno por alguns sociólogos e cientistas sociais. A associação com o líquido vem do fato de que a sociedade atual seria marcada pela liquidez, volatilidade e fluidez. Nesta sociedade do aligeiramento e performance individual, a formação integral começa a ser questionada e, em certo ponto, até desvalorizada em função da busca pela alta performance acadêmica para atender à competitividade alicerçada no neoliberalismo. Neste ambiente de competição, os estudantes são impulsionados a focar seus estudos prioritariamente nos paradigmas do mercado neoliberal e acabam por comprometer as relações sociais e, em algumas situações, até a saúde emocional e física para atender às exigências da sociedade contemporânea”.

Em “Sociedade do Cansaço”, Byung-Chul Han argumenta que a sociedade contemporânea está sofrendo de uma epidemia de cansaço, que é diferente da fadiga tradicional causada pelo excesso de trabalho físico. Ele acredita que a sociedade atual está sendo impulsionada por uma cultura de competição e produtividade sem fim, onde as pessoas são constantemente incentivadas a se superar e alcançar metas cada vez mais altas. A educação inaciana afirma que o propósito da formação integral é formar homens e mulheres para os demais, não havendo nesse sentido, espaço para competitividade desmedida. Esse pensamento diverge do pragmatismo do mundo neoliberal. Han, inclusive, frisa que “essa cultura da competição e produtividade está levando a uma série de problemas, incluindo uma falta de tempo livre e lazer, uma perda do senso de comunidade e solidariedade, e um aumento na ansiedade e na depressão”.

Em diálogo com a Pedagogia Inaciana, Han acredita que precisamos repensar nossos valores e objetivos como sociedade, para que possamos criar um mundo mais humano e sustentável, onde as pessoas possam encontrar um equilíbrio saudável conforme propõe a formação integral.

Fonte: Colégio Antônio Vieira

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