Por Clandio Maffini Cerezer e Maria Isabel Xavier, professores no Colégio Anchieta, em Porto Alegre (RS)
O século XXI é caracterizado por crises educativas, humanitárias e ambientais de elevada complexidade, que demandam abordagens inovadoras e transformadoras. Nesse cenário, o voluntariado emerge como uma ferramenta poderosa para o bem comum, promovendo valores como empatia, solidariedade e responsabilidade social. Além disso, demonstra ser um campo de formação de lideranças capazes de atuar em prol de uma sociedade mais justa e sustentável.
Conforme a Lei nº 9.608/1998, voluntariado é a atividade praticada de maneira gratuita em benefício de organizações públicas ou privadas sem fins lucrativos, com objetivos sociais, culturais e educativos. A prática vai além do assistencialismo, configurando-se como um espaço em que os indivíduos desenvolvem competências e habilidades essenciais para a cidadania ativa. O Estatuto da Juventude (2013) reforça o potencial do voluntariado como espaço formativo, ao ressaltar a inclusão dos jovens como agentes participativos nos processos sociais e políticos.
Por meio dessa perspectiva, o voluntariado revela-se como uma via prática para implementar os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), especialmente aqueles relacionados à igualdade social e ao enfrentamento das mudanças climáticas. Esses objetivos não são meras metas, mas compromissos globais que demandam o engajamento ativo de cidadãos em todos os níveis sociais. A tragédia das enchentes no Rio Grande do Sul em 2024, por exemplo, ilustra a relevância dessas ações, destacando a vulnerabilidade das comunidades e a necessidade de soluções coletivas que aliem políticas públicas a esforços voluntários.
Educação e voluntariado: a construção da cidadania
A incorporação do voluntariado no contexto educacional é reconhecida como estratégia pedagógica eficaz na formação de cidadãos conscientes e de líderes preparados. A Resolução nº 2/2018 do Conselho Nacional de Educação destaca a importância do voluntariado para a formação integral dos educandos, proporcionando experiências que promovem o protagonismo juvenil e a conexão com as realidades locais, reforçando a relevância do trabalho voluntário para a consolidação de valores fundamentais para a construção do bem comum, como a solidariedade e a responsabilidade social.
Nessa perspectiva, o voluntariado permite não apenas a conscientização sobre desigualdades sociais, mas também o desenvolvimento de competências como pensamento crítico, resolução de problemas, comunicação e trabalho em equipe. Em colégios da Rede Jesuíta de Educação (RJE), como o Colégio Anchieta de Porto Alegre, as práticas de voluntariado aparecem como parte integrante do processo educativo e em consonância com os princípios que norteiam o projeto pedagógico da Instituição, possibilitando aos estudantes colocarem em prática os valores inacianos traduzidos em amor ao próximo, justiça socioambiental e solidariedade.
Além disso, o caráter formativo das experiências voluntárias, em diálogo com documentos como a Encíclica Laudato Si (2015), enfatiza a interdependência entre as dimensões sociais e ambientais. A filosofia da ecologia integral proposta pela encíclica inspira iniciativas que cultivam a liderança ética e comprometida, capaz de enfrentar os desafios contemporâneos com base na convivência e no cuidado com as pessoas e com o planeta, traduzida pela metáfora da “casa comum” da qual cada um é chamado a cuidar, com vistas à promoção de um futuro sustentável para todos.
Nesse âmbito de formação e de inserção crítica na sociedade, o voluntariado insere-se numa dimensão distinta do assistencialismo restrito à prática da caridade e da doação material, iniciativa que tem seu papel muitas vezes atrelado a demandas de cunho emergencial. Nessa outra perspectiva, o voluntariado inscreve-se em um contexto mais amplo de cunho participativo, que considera o outro um igual e que se mobiliza para promover mudanças que impactem em suas vidas. Nesse sentido, o voluntariado constitui-se como um exercício crítico de cidadania, vinculado aos conceitos de justiça social e de corresponsabilidade pelo bem comum, buscando a origem dos problemas e à proposição de alternativas viáveis de enfrentamento.
Voluntariado e liderança: uma conexão transformadora
O voluntariado é especialmente poderoso no desenvolvimento de habilidades de liderança. Ao engajarem-se em ações voluntárias, os indivíduos têm a oportunidade de aprimorar competências interpessoais e cívicas, como comunicação, empatia e capacidade de resolução de problemas. Adicionalmente, promovem-se lideranças éticas e colaborativas, alinhadas à chamada liderança transformacional.
Conforme Bass e Riggio (2006), a liderança transformacional é constituída por quatro pilares: influência idealizada, motivação inspiradora, estimulação intelectual e consideração individualizada. Por meio dessas dimensões, os líderes inspiram e mobilizam indivíduos em direção à realização de metas coletivas, promovendo mudanças significativas tanto nos contextos organizacionais quanto na sociedade como um todo.
No contexto educacional, a Teoria do Envolvimento Estudantil de Astin (1984) evidencia como o engajamento em iniciativas de voluntariado pode impulsionar o sucesso acadêmico e o desenvolvimento pessoal dos estudantes. A experiência prática contribui para a formação de líderes mais conscientes, preparados para atuar em cenários complexos e dinâmicos.
Liderança sob a perspectiva inaciana
A espiritualidade inaciana, que orienta as práticas pedagógicas da Rede Jesuíta de Educação, oferece um modelo único de liderança centrada no “Magis”, ou seja, “o mais” a ser feito para o bem comum. A pedagogia inaciana combina teoria e prática, capacitando líderes a atuarem com empatia, ética e profunda consciência social.
Lowney (2015), ao estudar a liderança inaciana, destaca que a formação de lideranças é um processo contínuo, caracterizado por valores como autoconsciência, inventividade, amor, heroísmo e empatia. Esses princípios permitem aos líderes pautarem suas decisões com base em valores fundamentais, reforçando a colaboração e o desenvolvimento coletivo.
Para a Rede Jesuíta, o voluntariado é um ato transformador, tanto da sociedade como do indivíduo, o qual se concretiza em ações tangíveis de comunhão e de pertencimento. Nesse sentido, os jovens que optam por se articular nessa rede de ações voluntárias formam-se como lideranças que inspiram, pelo seu comprometimento e atuação, o protagonismo de outros jovens, a partir de projetos formativos pensados na perspectiva inaciana do autoconhecimento, do cuidado com o outro, do discernimento e da capacidade de colocar-se a serviço de uma missão coletiva.
O Colégio Anchieta, alinhado à espiritualidade inaciana, propõe uma pedagogia transformadora em que as ações voluntárias não se limitam ao assistencialismo, mas fomentam o compromisso com mudanças sistêmicas. As atividades desenvolvidas no âmbito escolar incentivam os jovens a assumirem papéis de liderança tanto dentro da comunidade escolar quanto nos espaços sociais mais amplos.
Além disso, a liderança inaciana exalta o potencial das relações interpessoais, baseando-se em valores como confiança, colaboração e respeito. Como destaca Guibert (2017), a prática do voluntariado é um exemplo concreto do preceito de Santo Inácio de Loyola, segundo o qual “o amor se traduz mais em ações do que em palavras”. Como salienta o Projeto Educativo Comum da Companhia, os processos formativos de uma instituição inaciana devem estar vinculados à sua identidade e às suas raízes fundacionais, “contemplando a valorização e a formação para a sustentabilidade e a justiça social”, valores que não são marginais à Missão Apostólica da Companhia, mas que “estão no seu âmago”. (PEC,2021 p.51),
Conclusão
Em suma, o voluntariado, mais do que uma atividade solidária, é uma ferramenta de transformação e formação cidadã. Ele oferece experiências práticas que capacitam os indivíduos a atuarem como líderes em suas comunidades e na sociedade em geral. No âmbito educacional, o alinhamento entre voluntariado e liderança mostra-se não apenas relevante, mas essencial para preparar cidadãos capazes de lidar com os desafios contemporâneos.
Por meio de experiências bem estruturadas, instituições como os colégios da Rede Jesuíta de Educação demonstram como o voluntariado escolar pode ser um ponto de partida para fortalecer competências de liderança e cidadania crítica. Além disso, a troca de experiências e a formação de equipes diversificadas possibilita a criação de soluções inovadoras de caráter inovador e multidisciplinar. Ao mesmo tempo, as comunidades beneficiadas pelas ações propostas experimentam melhorias concretas em seus contextos locais.
Incentivar o voluntariado desde a educação básica, de forma intencional e alinhada aos princípios pedagógicos da instituição educativa, é qualificar os projetos de vida das crianças e jovens, investindo no seu futuro e no da comunidade. Lideranças formadas a partir da cultura do serviço e da solidariedade têm o poder de transformar o mundo em um lugar mais justo, acolhedor e sustentável, promovendo uma nova cidadania voltada para o bem comum.
Referências Bibliográficas
ASTIN, Alexander. Student involvement: A developmental theory for higher education. Journal of College Student Development, Maryland, v. 25, p. 297-308, 1984.
BASS, Bernard. M.; RIGGIO, Ronald E. Transformational leadership. 2nd. ed. New York: Psychology Press, 2006.
Base Legislação da Presidência da República – Lei nº 9.608 de 18 de fevereiro de 1998
GUIBERT, José María, SJ. El liderazgo ignaciano: una senda de transformación y sostentabilidad. Cantabria, Espanha: Sal Terrae, 2017.
LOWNEY, Chris. Liderança Heroica: as melhores práticas de liderança de uma Companhia com mais de 450 anos vem mudando o mundo. Brasil: Edições de Janeiro, 2015.
MAGIS Brasil. (s.d.). O que é ser Magis? [Online]. Disponível em: https://magisbrasil.org.br/o-que-e-ser-magis/. Acesso em: 08 jul. 2025.
MUSICK, Marc A.; WILSON, John. Volunteers: A Social Profile. Indiana: University Press, 2008.
REDE JESUÍTA DE EDUCAÇÃO. Projeto Educativo Comum. Rede Jesuíta de Educação: Rio de Janeiro, 2021.
http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&view=download&alias=96311-rcp002-18&category_slug=setembro-2018-pdf&Itemid=30192 Acesso em 20 mai.2025
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2013/lei/l12852.htm